sexta-feira, 28 de junho de 2013

Uma reflexão sobre “democracia participativa”

O artigo abaixo é do final de 2011/início de 2012. Escrevi para a revista do Conselho de Leigos da Arquidiocese de São Paulo (CLASP).

Acredito que estava no site do CLASP também, mas, como o site está fora do ar, resolvi postá-lo aqui. É longo. Não era para ser postado em um blog. Pede uma leitura com mais calma, com mais tempo. Mas, acredito que pode contribuir com o debate que se recolou na sociedade. Algumas coisas precisariam ser acrescentadas, outras alteradas, mas resolvi manter a redação original.

Uma reflexão sobre “democracia participativa”

Paulo Flores*

Uma das maiores reivindicações das pastorais e movimentos sociais atualmente é a implantação de mecanismos de “democracia participativa” no sistema político brasileiro. Ao mesmo tempo em que a participação popular é a melhor forma de se promover as necessárias mudanças na sociedade brasileira, é preocupante a possibilidade de serem instituídos alguns mecanismos com o objetivo de se “ampliar a democracia” sem que haja mudanças em outros. Corre-se o risco de se promover apenas alguns ajustes nos parafusos para que tudo continue funcionando da mesma forma que sempre funcionou.
O maior problema é que não há uma visão clara do que realmente seja a democracia, quanto mais a “versão participativa”.
Por isso, antes de iniciar o debate, é interessante contextualizá-lo e definir o que é “democracia participativa”.

Instituições desacreditadas
Não é de hoje que o povo não acredita mais nas instituições de poder, tanto no Legislativo quanto no Executivo e no Judiciário, em todas as esferas de atuação (municipal, estadual e federal).
Seja porque quase que diariamente são veiculadas reportagens que expõem falcatruas cometidas por “nossos representantes”, seja porque entra ano e sai ano e permanecem os problemas sociais. É certo que as estatísticas apontam uma significativa melhora nos últimos tempos, mas elas se mostram insuficientes para a solução dos problemas existentes.
Com as instituições de poder desacreditadas, cresce o desejo de se fazer as coisas com as próprias mãos. O povo não quer mais esperar para ver realizado o que precisa ser feito.
Isso pode se tornar o caos ou, caso seja de uma maneira organizada, uma democracia direta, que funcionou na Grécia antiga. Naquela época e ocasião, a sociedade era pequena e não existia o sufrágio universal. Atualmente, todos têm o direito ao voto e, mesmo se ele fosse limitado, a enormidade de pessoas que vivem nas cidades impediria qualquer tentativa de democracia direta. Aliás, o sistema de democracia representativa que temos hoje foi implantado justamente para sanar esse problema.
Com a crise de confiança nos representantes e a impossibilidade de uma democracia direta, busca-se uma alternativa na qual o povo possa participar mais ativamente das decisões, o que está sendo chamado de “democracia participativa”.

Reforma política
Se não é de hoje que a chamada “classe política” brasileira sofre com a falta de credibilidade, por que somente agora ganha corpo o debate sobre a “democracia participativa”? Na verdade, as pastorais e movimentos sociais tentam “encaixar” esse tema para o debate social há bastante tempo. Tanto é que, por pressão social, a Constituição Federal de 1988 permite a realização de plebiscitos, referendos e a apresentação de projetos populares. Mas, para a população de uma forma geral esse é um tema totalmente desconhecido.
A visibilidade do tema aumentou apenas porque está em discussão no Congresso Nacional uma proposta de Reforma Política. Mas, tanto a imprensa quanto a grande parte de “nossos representantes” limitam o debate apenas à reforma do processo eleitoral. A impressão é que querem fazer uma reforma apenas de fachada. Maquiar a “coisa” que está aí para que ela fique mais “bonitinha” e o povo não perceba que tudo está como antes, se revolte contra “seus representantes” e tome o poder definitivamente. Ou seja, a ideia é promover ajustes para manterem-se no poder.
Para as pastorais e movimentos sociais o debate se insere em um projeto de democratização do Estado, tanto na definição das diretrizes de governo quanto na orçamentária. Mas, também neste campo, o que mais se ouve falar é da proposta de se regulamentar os mecanismos de democracia participativa previstos no artigo 14 da Constituição Federal: o plebiscito, o referendo e os projetos de iniciativa popular. Querem aproveitar o momento para garantir que a Lei revalide e amplie o uso destes mecanismos.
Mas, será que isso é suficiente para termos uma “democracia participativa” no Brasil? Será que devemos limitar nossas reivindicações à institucionalização destes mecanismos?

“A gente quer inteiro e não pela metade”
Se analisarmos com cuidado, veremos que a democracia deve garantir amplamente a participação popular. De acordo com Jean-Jacques Rousseau, o povo é soberano e apenas delega o poder aos seus representantes por meio de um “contrato social”, sendo o Estado o poder executivo da vontade do povo. Ou seja, por definição, na democracia (mesmo sem o “participativa”) é o povo quem tem a soberania. O povo não apenas “participa”, ele tem o poder. Ou seja, a democracia é participativa por natureza.
Mas, no mundo em que vivemos, não é o povo que tem o poder, é o dinheiro. Ele sucumbe governos, Estados e o próprio povo. Neste tipo de sociedade, tudo e todos são corrompidos pelo dinheiro. É por isso que Karl Marx e Friedrich Engels afirmam que o Estado, no capitalismo, é o “balcão da burguesia”.
Apesar de os meios de comunicação e até mesmo grandes teóricos afirmarem que no mundo capitalista impera a democracia, sabemos que o povo não tem a soberania. Então, não existe a democracia nestas sociedades.
Acrescentar um “participativa” logo após a palavra democracia e instituir mecanismos que supostamente ampliariam a participação popular nas decisões, não traz, por si só, o poder para as mãos do povo. O povo não será soberano. O dinheiro não perderá seu poder.
O que me parece é que o termo “democracia participativa” faz parte da maquiagem que querem fazer neste “negócio” que está aí para torná-lo mais palatável. Para mim, o que povo tem que exigir é simplesmente democracia.
Não podemos nos deixar enganar. Precisamos mostrar que não existe democracia onde uns poucos têm tudo e muitos não têm nada, onde o povo não tem a soberania, onde o dinheiro fala mais alto do que vidas, do que a fraternidade e a igualdade de direitos.

Massa de manobra
OK. Mas, temos que começar a virar a mesa. O começo é instituir os plebiscitos e referendos populares? Para dizer a verdade, existem dúvidas se essa é a alternativa mais viável ou se apenas querem que pensemos que seja.
Numa determinada faculdade, havia um professor de filosofia que deixava toda a turma atônita ao perguntar aos seus alunos: “O que vocês pensam é realmente o que vocês pensam?”. O que ele queria mostrar é que nossos pensamentos são influenciados por uma espécie de “inconsciente coletivo”; pela opinião pública. Será que estamos sendo influenciados a pensar que a solução é simplesmente acrescentar o termo “participativa” à palavra democracia?
Diversos teóricos já nos alertaram sobre a grande influência que os meios de comunicação social exercem sobre nossos pensamentos. Segundo a teoria da agulha hipodérmica, os meios de comunicação social têm um poder tão grande que conseguem determinar o pensamento, o consumo e até mesmo as ações da sociedade. As pessoas viram “massa de manobra”.
Posteriormente, viu-se que os teóricos que tinham formulado esse pensamento haviam desconsiderado as relações interpessoais do público atingido pelos meios de comunicação e que tais relações reduziam a influência exercida. Mas, com o “esfacelamento” da família, da Igreja, dos partidos políticos, das escolas e de tantas outras instituições que compunham a rede de relações sociais das pessoas, esse poder ainda continua reduzido?
O que parece, é que, com a crise das instituições as pessoas estão sem rumo, foram realmente transformadas em massa, em multidão que precisa ser conduzida. Ou seja, não somos o “homem perfeito” idealizado pelo apóstolo Paulo na carta aos Efésios (Ef 4, 14). Ao contrário, parece que somos jogados de um lado para o outro por qualquer vento de doutrina. Somos induzidos ao erro. Como uma manada, somos conduzidos ao abatedouro.
Em A psicologia das multidões, Gustave Le Bon afirma que a multidão é influenciável, impulsiva, móvel, seduzida por sentimentos simples e exagerados, tem a moral degradada e é intolerante e autoritária.
José Ortega Y Gasset, em La révolte des masses, diz que o homem-massa é um indivíduo abrutalhado, violento, promotor do esgarçamento social. Este indivíduo-massa, estimulado pelos meios de comunicação, pode fazer surgir a barbárie.

Pensamento alheio
Em termos de condução dos pensamentos, sabemos que a mídia é craque. Outra corrente teórica, diz que os meios de comunicação induzem o pensamento das pessoas por meio do agendamento dos temas colocados em pauta e por eles defendidos. Sempre reafirmando, de tempos em tempos, essa defesa. Em compensação, os pensamentos contrários ficam relegados a uma “espiral do silêncio”. Não são sequer mencionados, caem no ostracismo. Sem contraposição, os temas defendidos pela mídia se transformam em “verdade”, em “opinião pública”.
Apenas a título de ilustração, lembremos do que ocorreu com a Escola Base. Uma mãe deu queixa na polícia e procurou a imprensa dizendo que sua filha havia sido violentada na escola. Por dois meses toda a imprensa achincalhou proprietários, educadores e demais funcionários da escola. Pressionou o delegado responsável pelo caso, “apurou” os fatos, “julgou” os envolvidos, “condenou-os” como culpados e, “com o apoio da opinião pública”, executou a sentença. Acabou não apenas com a escola, mas com a vida de todos aqueles que considerou serem culpados. Passados os dois meses, as verdadeiras provas comprovaram a inocência de todos, frise-se, todos aqueles que a imprensa havia sentenciado como culpados. Ressalte-se que tudo o que foi feito com a Escola Base, supostamente tinha apoio social.
Para não ficar apenas neste caso emblemático, vamos lembrar também do garoto que ficou com o pé preso pelo cinto de segurança e foi arrastado por quilômetros por assaltantes que haviam acabado de roubar o carro de sua mãe. Todos se lembram desse caso e sabem da comoção criada na sociedade.
Agora, vamos imaginar a realização de um plebiscito sobre a pena de morte logo depois que a mídia “martelou” essas “informações” na cabeça das pessoas. Qual seria o resultado do plebiscito? E um plebiscito sobre o MST depois das imagens do trator derrubando os pés de laranja?

Democracia de verdade
Por isso, mais do que criar mecanismos que ampliem a participação popular nas decisões políticas e econômicas do país, sem querer dar receita de bolo, é preciso que as pastorais e movimentos sociais:
1) Denunciem a ditadura do capital. Mostrem que não vivemos em uma democracia (sistema no qual o poder deve pertencer ao povo);
2) Participem, divulguem e consolidem o poder dos conselhos de saúde, de educação, de juventude e de todos os demais conselhos existentes, exijam a criação de novos conselhos específicos e que estes conselhos tenham poder deliberativo, não apenas consultivo;
3) Participem das instâncias de decisão sobre a aplicação dos recursos públicos, como as reuniões do orçamento participativo (nos locais onde existem tais mecanismos), as sessões das câmaras municipais e assembleias legislativas que debatem o orçamento público, realizem reuniões com os representantes públicos (políticos) para tratar do orçamento e exigir que o povo delibere sobre o total arrecadado, não apenas sobre as sobras de recursos após a retirada dos valores a serem destinados ao pagamento do capital financeiro;
4) Lutem por uma educação de qualidade, que dê capacidade de os estudantes refletirem antes de decidir entre várias alternativas nas mais diversas situações que a vida lhes impõe; por atendimento de saúde universal e com a mesma qualidade para todos os brasileiros; para o cumprimento da Constituição Federal, principalmente ao que se refere aos direitos sociais;
5) Exijam a democratização dos meios de comunicação e a regulamentação do setor, para diminuir o poder de manipulação, de influência que eles têm sobre a sociedade e para estabelecer punições àqueles que utilizem os meios de comunicação para, propositalmente, difamar e caluniar sem apresentar provas, ou que venham a manipular provas, assim como para aqueles que descumprem o que estabelecem as regras de concessão para produção e retransmissão de programas de rádio e TV. Acima de tudo, não deixem se levar pelo discurso que regulamentar a imprensa a imprensa é estabelecer censura. Regular a imprensa é contribuir com a consolidação da democracia; é impedir que ela censure aquilo e aqueles que dela discordem; é favorecer o direito à informação bem apurada e verdadeira, com a concessão do mesmo espaço para todos os lados envolvidos nos fatos;
6) Por fim, mantenham sua autonomia perante aos partidos políticos e a governos; busquem, sempre, se organizar e se articular melhor e dar possibilidades para que seus membros sejam educados na luta e para a luta social, por meio de cursos e seminários de formação, mas também da ação social. Os militantes podem ser filiados aos partidos, mas as pastorais e movimentos sociais têm que manter suas autonomias.
Somente assim todo brasileiro terá possibilidade de participar plena e igualmente da sociedade. Aí vai haver democracia. Caso contrário, mesmo com novos mecanismos de “participação” continuaremos com nossa vida de gado em nossa “democracia participativa”.



* Paulo Flores é jornalista, com especialização em Marketing Político e Propaganda Eleitoral pela ECA-USP, membro do Instituto Paulista de Juventude e da Equipe de Teologia e Formação do Conselho de Leigos da Arquidiocese de São Paulo.