O
artigo abaixo é do final de 2011/início de 2012. Escrevi para a revista do Conselho
de Leigos da Arquidiocese de São Paulo (CLASP).
Acredito
que estava no site do CLASP também, mas, como o site está fora do ar, resolvi
postá-lo aqui. É longo. Não era para ser postado em um blog. Pede uma leitura
com mais calma, com mais tempo. Mas, acredito que pode contribuir com o debate
que se recolou na sociedade. Algumas coisas precisariam ser acrescentadas,
outras alteradas, mas resolvi manter a redação original.
Uma reflexão sobre “democracia
participativa”
Paulo Flores*
Uma das maiores
reivindicações das pastorais e movimentos sociais atualmente é a implantação de
mecanismos de “democracia participativa” no sistema político brasileiro. Ao
mesmo tempo em que a participação popular é a melhor forma de se promover as
necessárias mudanças na sociedade brasileira, é preocupante a possibilidade de
serem instituídos alguns mecanismos com o objetivo de se “ampliar a democracia”
sem que haja mudanças em outros. Corre-se o risco de se promover apenas alguns
ajustes nos parafusos para que tudo continue funcionando da mesma forma que
sempre funcionou.
O maior problema é
que não há uma visão clara do que realmente seja a democracia, quanto mais a
“versão participativa”.
Por isso, antes de
iniciar o debate, é interessante contextualizá-lo e definir o que é “democracia
participativa”.
Instituições
desacreditadas
Não é de hoje que o
povo não acredita mais nas instituições de poder, tanto no Legislativo quanto
no Executivo e no Judiciário, em todas as esferas de atuação (municipal,
estadual e federal).
Seja porque quase que
diariamente são veiculadas reportagens que expõem falcatruas cometidas por “nossos
representantes”, seja porque entra ano e sai ano e permanecem os problemas
sociais. É certo que as estatísticas apontam uma significativa melhora nos
últimos tempos, mas elas se mostram insuficientes para a solução dos problemas
existentes.
Com as instituições
de poder desacreditadas, cresce o desejo de se fazer as coisas com as próprias
mãos. O povo não quer mais esperar para ver realizado o que precisa ser feito.
Isso pode se tornar o
caos ou, caso seja de uma maneira organizada, uma democracia direta, que
funcionou na Grécia antiga. Naquela época e ocasião, a sociedade era pequena e
não existia o sufrágio universal. Atualmente, todos têm o direito ao voto e,
mesmo se ele fosse limitado, a enormidade de pessoas que vivem nas cidades
impediria qualquer tentativa de democracia direta. Aliás, o sistema de democracia
representativa que temos hoje foi implantado justamente para sanar esse
problema.
Com a crise de
confiança nos representantes e a impossibilidade de uma democracia direta,
busca-se uma alternativa na qual o povo possa participar mais ativamente das
decisões, o que está sendo chamado de “democracia participativa”.
Reforma
política
Se não é de hoje que
a chamada “classe política” brasileira sofre com a falta de credibilidade, por
que somente agora ganha corpo o debate sobre a “democracia participativa”? Na
verdade, as pastorais e movimentos sociais tentam “encaixar” esse tema para o
debate social há bastante tempo. Tanto é que, por pressão social, a
Constituição Federal de 1988 permite a realização de plebiscitos, referendos e
a apresentação de projetos populares. Mas, para a população de uma forma geral
esse é um tema totalmente desconhecido.
A visibilidade do
tema aumentou apenas porque está em discussão no Congresso Nacional uma
proposta de Reforma Política. Mas, tanto a imprensa quanto a grande parte de
“nossos representantes” limitam o debate apenas à reforma do processo
eleitoral. A impressão é que querem fazer uma reforma apenas de fachada.
Maquiar a “coisa” que está aí para que ela fique mais “bonitinha” e o povo não perceba
que tudo está como antes, se revolte contra “seus representantes” e tome o
poder definitivamente. Ou seja, a ideia é promover ajustes para manterem-se no
poder.
Para as pastorais e
movimentos sociais o debate se insere em um projeto de democratização do
Estado, tanto na definição das diretrizes de governo quanto na orçamentária.
Mas, também neste campo, o que mais se ouve falar é da proposta de se
regulamentar os mecanismos de democracia participativa previstos no artigo 14 da
Constituição Federal: o plebiscito, o referendo e os projetos de iniciativa
popular. Querem aproveitar o momento para garantir que a Lei revalide e amplie
o uso destes mecanismos.
Mas, será que isso é
suficiente para termos uma “democracia participativa” no Brasil? Será que
devemos limitar nossas reivindicações à institucionalização destes mecanismos?
“A
gente quer inteiro e não pela metade”
Se analisarmos com
cuidado, veremos que a democracia deve garantir amplamente a participação
popular. De acordo com Jean-Jacques Rousseau, o povo é soberano e apenas delega
o poder aos seus representantes por meio de um “contrato social”, sendo o
Estado o poder executivo da vontade do povo. Ou seja, por definição, na democracia
(mesmo sem o “participativa”) é o povo quem tem a soberania. O povo não apenas “participa”,
ele tem o poder. Ou seja, a democracia é participativa por natureza.
Mas, no mundo em que
vivemos, não é o povo que tem o poder, é o dinheiro. Ele sucumbe governos,
Estados e o próprio povo. Neste tipo de sociedade, tudo e todos são corrompidos
pelo dinheiro. É por isso que Karl Marx e Friedrich Engels
afirmam que o Estado, no capitalismo, é o “balcão da burguesia”.
Apesar de os meios de
comunicação e até mesmo grandes teóricos afirmarem que no mundo capitalista
impera a democracia, sabemos que o povo não tem a soberania. Então, não existe
a democracia nestas sociedades.
Acrescentar um “participativa”
logo após a palavra democracia e instituir mecanismos que supostamente
ampliariam a participação popular nas decisões, não traz, por si só, o poder
para as mãos do povo. O povo não será soberano. O dinheiro não perderá seu
poder.
O que me parece é que
o termo “democracia participativa” faz parte da maquiagem que querem fazer
neste “negócio” que está aí para torná-lo mais palatável. Para mim, o que povo
tem que exigir é simplesmente democracia.
Não podemos nos
deixar enganar. Precisamos mostrar que não existe democracia onde uns poucos têm
tudo e muitos não têm nada, onde o povo não tem a soberania, onde o dinheiro
fala mais alto do que vidas, do que a fraternidade e a igualdade de direitos.
Massa
de manobra
OK. Mas, temos que
começar a virar a mesa. O começo é instituir os plebiscitos e referendos
populares? Para dizer a verdade, existem dúvidas se essa é a alternativa mais
viável ou se apenas querem que pensemos que seja.
Numa determinada
faculdade, havia um professor de filosofia que deixava toda a turma atônita ao perguntar
aos seus alunos: “O que vocês pensam é realmente o que vocês pensam?”. O que
ele queria mostrar é que nossos pensamentos são influenciados por uma espécie de
“inconsciente coletivo”; pela opinião pública. Será que estamos sendo
influenciados a pensar que a solução é simplesmente acrescentar o termo
“participativa” à palavra democracia?
Diversos teóricos já
nos alertaram sobre a grande influência que os meios de comunicação social
exercem sobre nossos pensamentos. Segundo a teoria da agulha hipodérmica, os
meios de comunicação social têm um poder tão grande que conseguem determinar o
pensamento, o consumo e até mesmo as ações da sociedade. As pessoas viram
“massa de manobra”.
Posteriormente,
viu-se que os teóricos que tinham formulado esse pensamento haviam
desconsiderado as relações interpessoais do público atingido pelos meios de
comunicação e que tais relações reduziam a influência exercida. Mas, com o “esfacelamento”
da família, da Igreja, dos partidos políticos, das escolas e de tantas outras
instituições que compunham a rede de relações sociais das pessoas, esse poder
ainda continua reduzido?
O que parece, é que,
com a crise das instituições as pessoas estão sem rumo, foram realmente
transformadas em massa, em multidão que precisa ser conduzida. Ou seja, não
somos o “homem perfeito” idealizado pelo apóstolo Paulo na carta aos Efésios (Ef
4, 14). Ao contrário, parece que somos jogados de um lado para o outro por
qualquer vento de doutrina. Somos induzidos ao erro. Como uma manada, somos
conduzidos ao abatedouro.
Em A psicologia das multidões, Gustave Le Bon afirma que a multidão é influenciável, impulsiva, móvel, seduzida por sentimentos simples e exagerados, tem a moral degradada e é intolerante e autoritária.
Em A psicologia das multidões, Gustave Le Bon afirma que a multidão é influenciável, impulsiva, móvel, seduzida por sentimentos simples e exagerados, tem a moral degradada e é intolerante e autoritária.
José Ortega Y Gasset,
em La révolte des masses, diz que o
homem-massa é um indivíduo abrutalhado, violento, promotor do esgarçamento
social. Este indivíduo-massa, estimulado pelos meios de comunicação, pode fazer
surgir a barbárie.
Pensamento
alheio
Em termos de condução
dos pensamentos, sabemos que a mídia é craque. Outra corrente teórica, diz que
os meios de comunicação induzem o pensamento das pessoas por meio do
agendamento dos temas colocados em pauta e por eles defendidos. Sempre
reafirmando, de tempos em tempos, essa defesa. Em compensação, os pensamentos
contrários ficam relegados a uma “espiral do silêncio”. Não são sequer
mencionados, caem no ostracismo. Sem contraposição, os temas defendidos pela
mídia se transformam em “verdade”, em “opinião pública”.
Apenas a título de
ilustração, lembremos do que ocorreu com a Escola Base. Uma mãe deu queixa na
polícia e procurou a imprensa dizendo que sua filha havia sido violentada na
escola. Por dois meses toda a imprensa achincalhou proprietários, educadores e
demais funcionários da escola. Pressionou o delegado responsável pelo caso,
“apurou” os fatos, “julgou” os envolvidos, “condenou-os” como culpados e, “com
o apoio da opinião pública”, executou a sentença. Acabou não apenas com a
escola, mas com a vida de todos aqueles que considerou serem culpados. Passados
os dois meses, as verdadeiras provas comprovaram a inocência de todos, frise-se,
todos aqueles que a imprensa havia sentenciado como culpados. Ressalte-se que
tudo o que foi feito com a Escola Base, supostamente tinha apoio social.
Para não ficar apenas
neste caso emblemático, vamos lembrar também do garoto que ficou com o pé preso
pelo cinto de segurança e foi arrastado por quilômetros por assaltantes que haviam
acabado de roubar o carro de sua mãe. Todos se lembram desse caso e sabem da
comoção criada na sociedade.
Agora, vamos imaginar
a realização de um plebiscito sobre a pena de morte logo depois que a mídia “martelou”
essas “informações” na cabeça das pessoas. Qual seria o resultado do
plebiscito? E um plebiscito sobre o MST depois das imagens do trator derrubando
os pés de laranja?
Democracia
de verdade
Por
isso, mais do que criar mecanismos que ampliem a participação popular nas
decisões políticas e econômicas do país, sem querer dar receita de bolo, é
preciso que as pastorais e movimentos sociais:
1)
Denunciem a ditadura do capital. Mostrem que não vivemos em uma democracia (sistema
no qual o poder deve pertencer ao povo);
2)
Participem, divulguem e consolidem o poder dos conselhos de saúde, de educação,
de juventude e de todos os demais conselhos existentes, exijam a criação de
novos conselhos específicos e que estes conselhos tenham poder deliberativo,
não apenas consultivo;
3)
Participem das instâncias de decisão sobre a aplicação dos recursos públicos,
como as reuniões do orçamento participativo (nos locais onde existem tais
mecanismos), as sessões das câmaras municipais e assembleias legislativas que
debatem o orçamento público, realizem reuniões com os representantes públicos
(políticos) para tratar do orçamento e exigir que o povo delibere sobre o total
arrecadado, não apenas sobre as sobras de recursos após a retirada dos valores a
serem destinados ao pagamento do capital financeiro;
4) Lutem por uma
educação de qualidade, que dê capacidade de os estudantes refletirem antes de
decidir entre várias alternativas nas mais diversas situações que a vida lhes
impõe; por atendimento de saúde universal e com a mesma qualidade para todos os
brasileiros; para o cumprimento da Constituição Federal, principalmente ao que
se refere aos direitos sociais;
5) Exijam a
democratização dos meios de comunicação e a regulamentação do setor, para
diminuir o poder de manipulação, de influência que eles têm sobre a sociedade e
para estabelecer punições àqueles que utilizem os meios de comunicação para,
propositalmente, difamar e caluniar sem apresentar provas, ou que venham a
manipular provas, assim como para aqueles que descumprem o que estabelecem as
regras de concessão para produção e retransmissão de programas de rádio e TV.
Acima de tudo, não deixem se levar pelo discurso que regulamentar a imprensa a
imprensa é estabelecer censura. Regular a imprensa é contribuir com a
consolidação da democracia; é impedir que ela censure aquilo e aqueles que dela
discordem; é favorecer o direito à informação bem apurada e verdadeira, com a
concessão do mesmo espaço para todos os lados envolvidos nos fatos;
6) Por fim, mantenham
sua autonomia perante aos partidos políticos e a governos; busquem, sempre, se
organizar e se articular melhor e dar possibilidades para que seus membros sejam
educados na luta e para a luta social, por meio de cursos e seminários de
formação, mas também da ação social. Os militantes podem ser filiados aos partidos,
mas as pastorais e movimentos sociais têm que manter suas autonomias.
Somente assim todo
brasileiro terá possibilidade de participar plena e igualmente da sociedade. Aí
vai haver democracia. Caso contrário, mesmo com novos mecanismos de
“participação” continuaremos com nossa vida de gado em nossa “democracia
participativa”.
* Paulo Flores é jornalista, com
especialização em Marketing Político e Propaganda Eleitoral pela ECA-USP,
membro do Instituto Paulista de Juventude e da Equipe de Teologia e Formação do
Conselho de Leigos da Arquidiocese de São Paulo.
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