segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O fantasma da Idade Média

“Tudo é permitido. Mas nem tudo convém.
Tudo é permitido. Mas nem tudo edifica”.
(1Cor 10, 23)

Há algum tempo queria escrever um artigo sobre o aborto. Em princípio, minha idéia era alertar que o assunto estava posto apenas sob a ótica religiosa, sem o contraponto do debate feito no campo das ciências sociais e humanas. Entretanto, uma nota embasada em reflexões levantadas por uma “Comissão em Defesa da Vida”, amplamente divulgada pela internet e por meio de panfletos distribuídos nas portas das igrejas e em vias públicas, lido ou citado durante as missas, acelerou minha vontade de contribuir para que alguns pontos sejam esclarecidos.
Ao indicar voto contrário ao PT, a nota da Comissão em Defesa da Vida contraria decisão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que proíbe a sugestão de voto favorável ou contrário em candidatos ou partidos específicos. O agravante é que a referida nota – que tem entre seus principais defensores uma pessoa que foi candidato em São Paulo ao cargo de deputado Federal, por um partido que faz parte da coligação do PSDB –, foi respaldada por bispos católicos de dioceses paulistas.
Com a divulgação da nota, o tema aborto virou spam (pragas virtuais da internet) e passou a ser o assunto do momento. Mas, em decorrência do preconceito e do absolutismo (na concepção filosófica), continua sendo debatido apenas pela ótica religiosa e, mesmo nesta ótica, superficialmente. Mas, ao contrário do que alguns poderiam querer, abriu-se um enorme espaço para o debate do tema em profundidade, tanto na ótica religiosa quanto na social e humana.
Este artigo não pretende ser o ponto final do debate. A intenção é apenas apresentar algumas observações para dar mais qualidade a ele.

Igreja e política
Ao contrário do que muitas pessoas acreditam e do que outras tentam fazer acreditar, a Igreja sempre esteve metida em política. Na Idade Média, controlava o Estado, impunha as leis. Quem fosse contra, era torturado e acabava na fogueira. Muitas mulheres morreram por utilizar temperos que deixavam a comida mais saborosa. Eram tidas como bruxas. Galileu Galilei descobriu que a Terra era redonda e foi condenado por heresia. Depois de matar muita gente, após muitos séculos, a Igreja pediu perdão pelos erros cometidos.
Além de mostrar que, apesar da Igreja, a sociedade muda, a história deixa claro que padres e bispos sempre estiveram envolvidos em política. Ao se envolver, tomam partido por um lado ou por outro. No entanto, a maioria das vezes há divisão no clero. No Brasil, por exemplo, durante a ditadura militar, alguns padres e bispos apoiaram as forças armadas, outros defenderam a organização de resistência e esconderam ativistas políticos procurados pela polícia. Ou seja, nem sempre o que um bispo fala é compartilhado pelos demais.

Manutenção dos valores sociais
Até o século XVII, aproximadamente, a Igreja era considerada a detentora da informação e o “lugar do conhecimento”. Quando a prensa foi inventada, no século XV, a Igreja foi contra a edição de livros, principalmente daqueles em línguas locais. Com a publicação ela perderia o privilégio e o poder que o conhecimento proporciona. O livro somente foi colocado à disposição das massas no século XIX (cerca de quatrocentos anos depois da invenção da prensa).
Mesmo sendo uma língua em desuso desde o século XVI, a Igreja continuou a celebrar missas em latim até o século XX, após a realização do Concílio Vaticano II. Ou seja, a Igreja é uma instituição tradicional e, como tal, tem uma cultura cristalizada, que leva muito tempo para sofrer ou aceitar qualquer mudança.
Ao contrário do que muitos possam pensar, a manutenção da tradição é uma função muito importante exercida pela Igreja e necessária para a sociedade. Em grande medida é graças a isso que, valores como a fraternidade, a compaixão, o respeito ao próximo e às características individuais são mantidos na sociedade. Graças à Igreja não somos “jogados pelas ondas e levados para cá e para lá por qualquer vento de doutrina, presos pela artimanha dos homens e pela astúcia com que eles nos induzem ao erro” (Ef 4, 14).
Ou seja, muitas vezes a Igreja prejudica mudanças benéficas para a sociedade. Outras vezes ajuda a manter questões e valores necessários ao bom convívio social.

Contrariando a CNBB
Nos últimos tempos, no entanto, com a consolidação da democracia, a Igreja, na figura da CNBB, tem evitado tomar partido e se envolver em questões “de Estado”. Os bispos preferem formar os cristãos para que eles saibam que “Tudo é permitido. Mas nem tudo convém. Tudo é permitido. Mas nem tudo edifica”. (1Cor 10, 23). Ao não impor regras, procura evitar qualquer semelhança com a Idade Média e a Inquisição. Pregam o “livre arbítrio” e dão formação aos fiéis, para que eles, por meio da fé e sem imposição, tornem-se “homens perfeitos”. (Ef 4, 13).
Não é isso o que temos visto nos últimos meses. Contrariando a posição já tradicional no período democrático brasileiro, bispos, padres e membros de movimentos religiosos da Igreja Católica utilizam o nome da CNBB para pregar voto contrário à candidata de um partido em específico, em benefício do candidato do outro partido. Claramente, quem faz isso, utiliza a boa-fé dos cristãos para tentar eleger o candidato que apóia.
A CNBB já emitiu nota desautorizando o uso de seu nome e proibindo o clero de utilizar o espaço das igrejas e suas posições eclesiásticas para fazer campanha contra ou a favor de qualquer candidato. Não foi respeitada.

A base da polêmica
A desculpa desses cabos eleitorais qualificados para fazer campanha contrária ao PT é o Segundo Relatório Brasileiro Relativo ao Pacto Internacional pelos Direitos Civis e Políticos, um documento no qual o atual governo relata quais medidas estão sendo tomadas para que se regulamente a legislação e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Em nenhum momento, é claro, esses cabos eleitorais informam que o Brasil ratificou esse Pacto em 1992, quando o PT não estava no governo e sequer tinha maioria no Congresso Nacional, ou que quem ratifica pactos e convenções internacionais é o Congresso Nacional (deputados federais e senadores) e não o Poder Executivo (Presidente). Apenas utilizam as informações do relatório sobre as medidas tomadas para o cumprimento das exigências do artigo 3º do Pacto, que trata do respeito à igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Também não informam que uma dessas medidas foi tomada por José Serra (PSDB), em 1998, quando ministro da Saúde, ao assinar norma técnica específica sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes de Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, que autoriza a realização de abortos no país. Em minha opinião, uma postura correta do então ministro da Saúde, mas contraditória ao discurso moralista da campanha de difamação à candidata do PT.
O fato é que o relatório, mencionado na nota da Comissão em Defesa da Vida, nada mais é do que um informe sobre as medidas que vêm sendo tomadas, desde que o Brasil ratificou o Pacto, para que as normativas deste documento internacional sejam respeitadas. Existem no relatório 21 parágrafos numerados (de 26 a 47) que falam sobre tais medidas.

Igualdade de direitos
Sobre o artigo 3º, o relatório inicia apresentando todos os artigos da Constituição que proíbem a discriminação baseada no gênero, assim como aqueles que visam a promoção da igualdade. Em seguida, versa sobre todas as convenções e tratados internacionais, dos quais o Brasil faz parte, que têm a intenção de eliminar e punir todo tipo de violência e discriminação contra as mulheres, bem como eliminar mecanismos do Código Penal e do novo Código Civil brasileiros que continham elementos patriarcais e machistas. Também fala sobre a criação da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres e do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres.
Em seguida, o relatório reconhece que, apesar dos avanços obtidos na área jurídica e no mercado de trabalho, as mulheres ainda enfrentam práticas violentas e discriminatórias, destacando-se entre elas a violência doméstica. Também persiste a exploração sexual de mulheres e meninas.
Como se vê, o relatório, como o nome diz, relata o que vêm acontecendo na sociedade brasileira. Apresenta a realidade de conquistas obtidas pelas mulheres, por meio de suas entidades organizativas, assim como dos desafios ainda a serem vencidos.
Em seguida, o relatório discorre sobre projetos e reivindicações de ONGs e demais entidades representativas dos movimentos feministas com relação à igualdade de direitos e à violência contra mulheres. Por respeito à democracia, o atual governo resolveu atender a esses anseios e se comprometeu em atender o princípio da livre escolha no exercício da sexualidade, enviando para revisão a legislação repressiva sobre o aborto. É bom lembrar que são os deputados federais e senadores os responsáveis pela elaboração e revisão de leis federais e não a Presidência da República.

O que cabe ao Poder Executivo
O que o relatório ressalta é que cabe ao governo oferecer informações e assegurar o acesso a meios contraceptivos (pílulas, preservativos etc.) de forma que as pessoas tenham condições de evitar a gravidez indesejada e possam realizar o planejamento familiar, já que esse é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988. O relatório reconhece, no entanto, que o país ainda não conseguiu cumprir plenamente a lei, que assegura autonomia na decisão de se ter ou não filhos.
Diz o relatório: “O difícil acesso a métodos anticoncepcionais e o pequeno número de serviços de atendimento às mulheres que foram vitimadas pela violência sexual têm sido funcionais à gravidez indesejada e à realização de abortos clandestinos os quais, por sua vez, predispõem as mulheres ao óbito materno. O aborto é, atualmente, a 5ª causa de óbito materno no Brasil”. Ou seja, morrem o feto e a mãe.
Traduzindo, o relatório diz que muitas mulheres não têm acesso a meios anticoncepcionais (como a pílula) e continuam sendo vítimas de violência doméstica e sexual, o que as leva à gravidez indesejada e, por vezes, à realização de abortos, motivados ou espontâneos. Informa ainda que os óbitos maternos decorrentes de abortos são a 5ª maior causa de morte de mulheres no país.

Descriminalização do aborto
De acordo com a legislação brasileira, o aborto é crime. Muitas entidades representativas das mulheres ressaltam que, feita em condições inadequadas, a prática pode deixar seqüelas físicas e psicológicas na mulher que precisa passar por tal intervenção e pedem a descriminalização. Isso não quer dizer que tais entidades são favoráveis ao aborto.
Defendem que as seqüelas psicológicas, inclusive, ganham maior dimensão no contexto religioso, onde se reforça que há vida a partir da concepção e, por isso, as mulheres são acusadas de homicídio. Há quem diga que as mulheres que não seguem nenhuma religião podem até não sofrer seqüela psicológica, ou esta ser mínima. Dizem que se fosse uma questão menos estigmatizada essas seqüelas diminuiriam muito.
Acredito que seja mínimo o número de pessoas favoráveis ao aborto. A verdade é que a questão está mal formulada. O que deveria se questionar é se as pessoas são favoráveis que as mulheres que realizam aborto sejam consideradas criminosas. Também acredito que seja mínimo o número de pessoas que queiram ver essas mulheres na cadeia.
O que se reivindica é a liberdade de decisão. O que se reivindica é a descriminalização, para que o aborto possa ser tratado como questão de saúde pública, e não como crime.

A gente quer inteiro e não pela metade
Sendo considerado como crime, o governo não pode dar assistência e destinar recursos para que o aborto seja realizado com maior segurança e higiene sanitária, nem tampouco disponibilizar tratamento de saúde e psicológico para mulheres que precisem passar por tal intervenção e necessitem de atendimento.
É comum o preconceito e a desconfiança das equipes de saúde dos hospitais. Não querem ser considerados cúmplices, ou executores do “crime”. Mulheres que têm aborto espontâneo também sofrem com a criminalização. Assim como acontece com aquelas que sofrem aborto induzido, muitas delas deixam de ser atendidas ou têm que rodar de hospital em hospital em busca de atendimento, o que as coloca em risco de morte.
Quem defende a descriminalização do aborto não é propriamente a favor do mesmo, apenas quer que sejam garantidos os mecanismos que permitam ao governo atender adequadamente às mulheres, com instrumentos para se evitar a gravidez, e, caso ela ocorra, que seja dada orientação pertinente e, se a decisão da mulher for pelo aborto, que ela tenha direito ao atendimento com segurança e higiene e os médicos não tenham medo de atendê-las e serem “jogados na fogueira”, juntamente com as “bruxas” que os realiza. Por isso, dizem que o aborto é uma questão de saúde pública.
Com a descriminalização o governo poderia ir além de oferecer informações e assegurar o acesso a meios contraceptivos. Mas, enquanto o aborto for crime...

Atitude cristã
Ambos os candidatos têm posição semelhante sobre o aborto e tomam medidas para regulamentar os tratados internacionais assinados pelo Brasil. Se ambos os candidatos são “favoráveis ao aborto” e os bispos não autorizam o voto em candidatos “abortistas”, por que então eles não pedem para que os fiéis votem nulo? Por que pedem somente para não votar em partido X? Tratar o tema com “dois pesos e duas medidas” é uma atitude cristã?
Além disso, é preciso que se diga que, permanecendo como está, deixa de existir a “igualdade cristã”. Apenas quem é bem instruído ou possui posses tem acesso a métodos anticoncepcionais, pode realizar o planejamento familiar ou faz o aborto em clínicas melhor equipadas e evita o risco de morte. Pobres e analfabetos, que não tenham informações sobre meios de se evitar a gravidez são punidos, assim como meninas e mulheres que sofrem violência sexual em casa e não denunciam o estupro. Muitas, em casos de pobreza e analfabetismo, são punidas tanto se optarem pelo aborto quanto se decidirem manter a gravidez.

Ao final das contas...
A campanha moralista é anacrônica. O que parece é que a Igreja (pelo menos esses cabos eleitorais "qualificados") acredita ainda estarmos na Idade Média, tempo em que era detentora da “verdade absoluta” e quem não a obedecesse e se atrevesse a pensar era queimado vivo na fogueira.
Não estamos mais na Idade Média. Nos dias de hoje, cabe à Igreja dar a formação adequada aos fiéis, para que eles tomem a decisão que achar adequada. Se, na opinião de certos líderes religiosos, os fiéis estão tomando a decisão errada, é a Igreja quem não está conseguindo cumprir sua missão formadora. Ao invés de trabalhar melhor a formação, esses “líderes” tentam coagir, voltar a um tempo que não existe mais.
No entanto, apesar de discordar da ocasião, do método e do motivo pelo qual o tema foi colocado em discussão, acredito que esses “cabos eleitorais” jogaram contra eles mesmos e propiciaram à sociedade uma grande oportunidade para realizar um debate aprofundado sobre o aborto, sem hipocrisia nem “caça às bruxas”.

* Jornalista, com especialização em Marketing Político e Propaganda Eleitoral pela ECA/USP. Membro do GT de Educação do Instituto Paulista de Juventude e assessor de grupos de jovens da Igreja Católica.

Colaboração:
Elena Alves Silva, teóloga e pedagoga formada pela Universidade Metodista de São Paulo, Mestre e doutoranda em Ciências da Religião pela UMESP. Pastora da Igreja Metodista do Jardim Colorado, em São Paulo.
Julia Paiva Zanetti, cientista social formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense, pesquisadora do Observatório Jovem do Rio de Janeiro e militante feminista. É católica.
Laine Chapada de Amorim, psicóloga formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, MBA em Gestão Empresarial e Pública pela FAAP. É católica.

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