terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Qualidade das creches estão em risco

A professora da PUC-SP e pesquisadora sênior da Fundação Carlos Chagas, Maria Malta Campos, foi entrevistada pelo Observatório da Educação sobre as propostas do Plano Nacional de Educação (PNE) para as crianças de 0 a 5 anos. A Meta 1 do documento traz objetivos e estratégias para a educação infantil nos próximos 10 anos.

Malta considera a meta de atendimento de 50% até 2020 muito alta, o que pode representar um risco caso a expansão não seja acompanhada de qualidade da oferta. “Essa é uma faixa de bebês e crianças muito pequenas, que podem ser até prejudicadas se matriculadas em creches de baixa qualidade”, avalia.

Confira a seguir a entrevista na íntegra.

Observatório da Educação - Qual avaliação que a sra. faz da meta que o PNE propõe para a educação infantil, a meta nº1?
Maria Malta - Em primeiro lugar, concordo com as restrições apontadas em análise realizada por Vital Didonet sobre a redação dessa meta (Didonet, V. Análise e comentário da Meta 1 do PNE 2011-2020 – Educação Infantil, 6/12/2011 – Leia aqui). Ele chama a atenção para a expressão pouco precisa “atendimento escolar da população de 4 e 5 anos”, e para a incorreta menção da “educação infantil” de até 3 anos. Concordo com suas restrições e com a sugestão de nova redação, já encaminhada ao relator. Com efeito, “atendimento escolar” pode ser entendido como se a criança de 4 e 5 anos pudesse estar sendo matriculada em qualquer etapa e modalidade educacional, quando nessa faixa etária a criança deve ser matriculada na pré-escola, de acordo com a Constituição e a LDB. Educação Infantil engloba as duas faixas etárias, de creche e pré-escola, e está portanto inadequadamente utilizada apenas para a faixa de 0 a 3 anos.

Mas eu também tenho restrições quanto às porcentagens de atendimento previstas nessa meta, para a creche, pois a universalização para a faixa etária de 4 anos em diante, até os 17 anos, já foi definida pela Emenda Constitucional n. 59.

No caso da creche, o projeto deste PNE incorre no mesmo erro do anterior, pois fixa porcentagens acima das possibilidades reais de realização, quando levamos em conta a tendência histórica de ampliação do atendimento e os custos de uma boa creche. O risco é enfatizar mais o número declarado de matrículas do que um nível básico de qualidade, pois essa é uma faixa de bebês e crianças muito pequenas, que podem ser até prejudicadas se matriculadas em creches de baixa qualidade. Muito poucos países do mundo chegaram a atender 50% de crianças de 0 a 3 anos de idade. A meta intermediária de 30% também me parece alta demais para se atingir em 5 anos, com um nível básico de qualidade.

Hoje temos cerca de 18% de crianças de 0 a 3 anos matriculadas na creche, mas é preciso distinguir as faixas de idade, pois é ínfimo o porcentual de crianças de 0, 1 e 2 anos de idade nesse conjunto. Além disso, a demanda é muito diferente conforme se trate de um grande centro ou de um município menor, situado no interior.

É positiva essa opção de se fixar uma meta intermediária, mas teríamos que primeiro estimar as reais possibilidades de se atingir esses porcentuais de cobertura: um plano decenal precisa apontar para a frente, mas também não pode se desmoralizar ao fixar  objetivos sem base em cálculos mais cuidadosos.

Observatório - Qual avaliação que a sra. faz das estratégias definidas para essa meta?
Malta - Houve um aumento no número de estratégias propostas, que eram 9 no projeto do executivo e agora são 15 no projeto substitutivo. Parece que o MEC havia optado por um projeto mais enxuto e agora outros aspectos foram incorporados ao Plano, alguns relativamente polêmicos.

Observatório - O substitutivo incluiu a questão da pesquisa por demanda manifesta (itens 1.3 e 1.4). Vê algum problema com essa opção, pela demanda manifesta, e não um termo mais amplo?
Malta - O importante a reter, no caso dessas duas novas estratégias – e também da estratégia 1.2 - introduzidas no substitutivo, é que há uma preocupação explícita com a forma de estimar e lidar com a demanda não atendida em creche. Hoje, nos grandes centros, há uma enorme demanda reprimida por creche. Só na cidade de São Paulo, a lista de espera oficial registra mais de 150 mil pedidos de matrícula. Como proceder? Quais os critérios que devem ser adotados? Como se deve lidar com essa demanda? Cada prefeitura tem adotado seus próprios critérios, mais ou menos sistematizados e transparentes conforme o caso.

Concordo, também nesse aspecto, com os comentários de Vital Didonet, que aponta: para “a efetiva prioridade ao atendimento da população mais pobre” que deveria ser garantida pelo sistema público; para o necessário estímulo ao sistema público para que planeje, com base em diagnósticos da demanda, a ampliação do atendimento em creche e não simplesmente fique esperando que a demanda se manifeste, como acontece hoje na maioria dos casos; para a indicação de consultas públicas para aferir essa demanda, mecanismo que diversas prefeituras já adotam.

Note-se que, também para a pré-escola, alguns desses mecanismos são necessários para que se atinja a meta da universalização. A estratégia 1.15 refere-se à “busca ativa de crianças em idade correspondente à educação infantil”, colocando corretamente uma diferença de procedimento para as crianças menores: “preservando o direito de opção da família em relação às crianças de até três anos”.

Observatório - O conveniamento de creches para o atendimento da educação infantil está relacionado à qualidade da educação?
Malta - O projeto do executivo já incluía, na estratégia 1.4, a menção ao atendimento gratuito por entidades certificadas como beneficentes de assistência social. O substitutivo manteve a mesma redação. Sei que existem restrições aos convênios por parte de diversos movimentos. Mas o fato é que não há como ampliar o número de matrículas se eliminarmos essa forma de atendimento. O que é preciso é garantir uma efetiva supervisão do poder público, com avaliação periódica de qualidade. Aliás, essa exigência deveria se estender às instituições particulares que cobram mensalidades dos pais, pois sabemos que também, com raras exceções, elas não primam pela qualidade.

Há um pressuposto geral de que as creches públicas são melhores do que as privadas conveniadas. Não contamos com dados conclusivos a esse respeito até agora. Nem sempre essa premissa se confirma, pois em todas as modalidades de atendimento se constata uma enorme heterogeneidade quanto à qualidade. Minha posição é que um nível básico de qualidade deveria ser exigido de todos os tipos de atendimento a crianças pequenas, inclusive com penalidades previstas em lei para os administradores responsáveis. Nesse sentido, a estratégia 1.3 do projeto do executivo, reformulada como estratégia 1.6 no substitutivo, é um passo muito importante, pois prevê a “avaliação periódica da educação infantil, com base em parâmetros nacionais de qualidade”.

Sobre a estratégia 1.12, inexistente no projeto do executivo, mas abordando aspecto que já constava do PNE anterior, pode haver um risco de que esses programas complementares sejam entendidos como substitutos do atendimento em creche. Com efeito, programas de orientação e apoio às famílias são necessários e importantes, porém não podem ser entendidos como programas que se colocam no lugar de programas educacionais dirigidos à população infantil. Embora a redação especifique que eles devem ser implementados “em caráter complementar”, na realidade diversas prefeituras tem adotado programas desse tipo no lugar de atendimentos educativos voltados para a criança, ou seja, creches. Na redação agora proposta por Vital Didonet para essa estratégia, o papel da área educacional fica mais explícito, o que é positivo: “1.12 Articular-se com as áreas de saúde e assistência social para contribuir com sua especialidade, em programas de orientação e apoio às famílias com foco no desenvolvimento integral das crianças de até três anos.”

Redação: Lia Segre Edição: Fernanda Campagnucci


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