terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Creches: Expandir vagas conveniadas pode ser grave retrocesso

Quando o assunto é expansão de vagas na educação infantil, uma discussão central é o modo como a ampliação da oferta deve ser feita: se via conveniamento ou atendimento público direto. O debate apareceu com força na Conferência Nacional de Educação (Conae), que deliberou pelo congelamento do número de matrículas em creches conveniadas até 2014, e também pela extinção da modalidade até 2018.

No entanto, a demanda dos movimentos que atuam na área não se refletiu na proposta do Executivo de Plano Nacional de Educação (PNE). A meta nº 1 do PNE, que trata da educação infantil, não faz uma opção explícita pelo atendimento direto.

Em entrevista ao Observatório da Educação, Deise Gonçalves Nunes, professora, doutora em educação, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Políticas Públicas, Espaços Públicos e Serviço Social (NUPESS) da Escola de Serviço Social, da Universidade Federal Fluminense (UFF), fala sobre o conveniamento de creches, a partir do parecer do PNE elaborado pelo relator e deputado federal Ângelo Vanhoni (PT-PR).

Nunes também é pesquisadora de movimentos sociais e educação infantil, assessora da Creche Madalena Sofia/RJ e integrante do colegiado do Fórum Permanente de Educação Infantil do Rio de Janeiro. Leia a seguir a entrevista na íntegra.

Observatório da Educação – Quais observações e análises podem ser destacadas quanto ao tema do conveniamento de creches a partir da meta 1, do parecer do PNE?
Deise Gonçalves Nunes - Na leitura do parecer observamos que houve uma rejeição a todas as emendas de supressão do dispositivo conveniamento sob a alegação de que poderia afetar a oferta de vagas gratuitas (p. 46 e 49). A justificativa de rejeição aponta para uma possibilidade de expansão de vagas por meio dos convênios. Isto pode ser confirmado quando analisamos a estratégia 1.7; nela, o relator apresenta uma proposta de articulação de vagas em creches certificadas como beneficentes com a expansão da oferta escolar pública. Isto pode representar um grave retrocesso, pois algumas propostas de manutenção do dispositivo dos convênios, inclusive defendidas pelo Fórum Permanente de Educação Infantil do Rio de Janeiro, defendem a progressiva extinção de vagas nas creches conveniadas condicionada à ampliação da oferta pelo poder público.

O termo articulação, utilizado na estratégia 1.7, aponta para uma política de manutenção dos convênios, o que não responde ao entendimento que temos de que a educação infantil deve compor a agenda das políticas públicas assegurada, portanto, pelo poder público, dentro do princípio de verbas públicas para a educação pública, defendida por amplas parcelas da população brasileira e bandeira de luta de muitos movimentos sociais.

OE - O conveniamento de creches para o atendimento da educação infantil está relacionado à qualidade da educação?
Deise - O conveniamento não está articulado à qualidade da educação.  Pelo contrário, a história dos convênios responde à falta de oferta de vagas em creches e pré-escolas públicas e a uma concepção de que para a classe trabalhadora, qualquer tipo de atendimento seria suficiente. Esta concepção balizou a organização de um sistema de atendimento às demandas, fundado em concepções assistencialistas e higienistas.

A luta dos movimentos sociais, sobretudo os originados de comunidades mais pobres e encabeçados por liderança de mulheres trabalhadoras sempre foi a demanda por creches públicas ou, em sua ausência, por convênios que possibilitassem um atendimento dentro de critérios de qualidade, o que supõe um valor per capita que garanta o atendimento a tais critérios.

Entretanto, cabe destacar que a oferta pública, em muitos casos, também está longe dos padrões de qualidade que hoje defendemos. Construções mal feitas, falta de equipamentos adequados, professores mal remunerados e sem formação básica e continuada, ausência de diálogo com famílias e comunidades, dentre outros, são elementos importantes que condenam muitas creches e pré-escolas públicas em termos de padrões de um serviço público de qualidade.

OE - O documento final da Conae aponta que “o número de matrículas em creches conveniadas deve ser congelado em 2014” e que o conveniamento de creches privadas deve acabar até 2018. Pode-se dizer que o parecer do PNE contempla as resoluções da Conae?
Deise - Pelo que li no documento final da Conae está escrito: “a ampliação da oferta de educação infantil pelo poder público, extinguindo progressivamente o atendimento por meio de instituições conveniadas” (p.68). Nós, do Fórum Permanente de Educação Infantil do Rio de Janeiro demandamos que a extinção do convênio esteja condicionada ao aumento de oferta pelo poder público, conforme a demanda manifestada pelas famílias.  Acho que o documento final traz a ideia de estudo de demandas, mas o relator não incorporou nenhuma proposta de extinção dos convênios. Pelo contrário, aponta para a sua manutenção e incorporação a uma política de ampliação de vagas gratuitas.  O termo vagas gratuitas pode ser a porta de entrada de diferentes práticas de conveniamento ou de transferência de recursos públicos para a iniciativa privada, conforme vem ocorrendo com o ensino superior.

OE - Como dar continuidade ao debate sobre o “congelamento", tendo presente a conjuntura atual?
Deise - O Daniel Cara (coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação) participou do Encontro Regional da Região Sudeste do Movimento Interfóruns de Educação Infantil (Mieib), realizado na Universidade Federal Fluminense, em junho de 2011 e lá debatemos a posição do Fórum do Estado do Rio de Janeiro desde a defesa da manutenção dos convênios até a universalização do atendimento face às demandas das famílias.  Entendemos que não se pode defender o congelamento sem um estudo do atendimento às demandas, por parte do poder público, sob o risco de que a falta de oferta possa afetar a vida de milhares de crianças que ficariam mais vulnerabilizadas, sem atendimento ou submetidas a estratégias locais, sem qualquer controle social.

OE- Quais os principais desafios teremos para o futuro em relação ao conveniamento de creches?
Deise - A construção desta cultura política parte do pressuposto de que as creches conveniadas são uma concessão do poder público e com tal se constituem em espaços públicos passíveis de controle social, que devem ser geridos de forma democrática, com condições dignas de funcionamento. Fóruns populares, conselhos de direitos e de políticas, movimento sociais, conselhos de pais e de creches-comunidades devem ser protagonistas dessa nova cultura política.

OE – Ao citar a necessidade da “construção de uma cultura política de controle social”, justifica que “as creches conveniadas são uma concessão do poder público”. A partir disso, como tem sido o debate na sociedade sobre a relação “público e privado” com relação aos conveniamentos?
Deise - A criminalização da pobreza produz um olhar de “desconfiança” para as entidades conveniadas como se todas fossem, por princípio, usurpadoras do bem público e, ao mesmo tempo produz certa complacência com a esfera pública estatal que orienta seus convênios, muitas vezes, a partir de convicções particulares, algumas alimentadas em pervertidas relações clientelistas, sem dotação orçamentária e estudos de demandas.  Esta demonização de algumas entidades conveniadas e santificação da esfera pública estatal acarretam também inúmeras dificuldades operacionais: relações verticalizadas entre secretarias municipais de educação e entidades conveniadas muitas vezes transformadas em relação de fiscalização e não de cooperação; falta de comunicação e uma apartação radical entre as entidades privadas sem fins lucrativos e as públicas, sobretudo no que diz respeito à intersetorialidade de políticas.

OE – Como os municípios podem atuar a partir das dificuldades que a conjuntura atual apresenta?
Deise - A principal dificuldade existente é que ainda há uma leitura de que o atendimento ao pobre pode ser feito de qualquer maneira, fundamentada na persistente ideologia de criminalização da pobreza. Isso alimenta a ideia de que qualquer recurso é suficiente e que as entidades privadas sem fins lucrativos são homogêneas em termos de recursos, de processos de organização e funcionamento e de contrapartida.  Uma creche popular, mantida por associação de moradores, de comunidades periféricas, por exemplo, não pode oferecer a mesma contrapartida de uma creche mantida por grupos filantrópicos vinculados a determinadas agências do terceiro setor. Os municípios precisam estudar suas demandas de convênios e buscar, pela cooperação, construir estratégias que possibilitem que este serviço seja oferecido com qualidade dentro da sua diversidade de possibilidades e dentro da perspectiva de que é dever do Estado a oferta do serviço e que os convênios são transitórios.

Acho que o principal desafio é a construção de uma cultura política de controle social tanto sobre os serviços que são oferecidos em creches conveniadas quanto sobre os processos de conveniamento, o que inclui um rigoroso controle sobre o montante dos repasses, sobre compras de alimentação e equipamentos, pagamento de pessoal, a fim de se evitar superfaturamentos e outros mecanismos que, infelizmente, ainda persistem na relação nem sempre transparente entre o público e o privado (com ou sem fins lucrativos).

Por Observatório da Educação - Ação Educativa
Redação: Vanessa Ramos / Edição: Fernanda Campagnucci

4 comentários:

  1. Oi, Van!
    Ou a correria do final de ano está me deixando louco, ou a Deise se contradiz na entrevista. Confesso que fiquei atordoado. Ela defende ou não os convênios?

    - Pelo título, ela é contrária (“pode ser um grave retrocesso”);
    - Na primeira resposta, ela lamenta a rejeição de emendas que suprimiam o dispositivo de conveniamento, sob a alegação de que poderia haver prejuízo às crianças e mães, devido à falta de vagas (retrocesso). Na própria primeira resposta ela diz que propostas, como a do Fórum Permanente de Educação Infantil do Rio de Janeiro (do qual ela, mais a frente se coloca como sendo membro), condicionam o fim dos convênios à efetiva criação de vagas verdadeiramente públicas. Mais a frente, na quarta resposta, ela volta afirmar “Entendemos que não se pode defender o congelamento sem um estudo do atendimento às demandas, por parte do poder público, sob o risco de que a falta de oferta possa afetar a vida de milhares de crianças”;
    - Pelo que entendi, na segunda resposta, ela diz que as unidades conveniadas foram instituídas com a concepção de que à classe trabalhadora, qualquer coisa serve (baixa qualidade), valorizando em um primeiro momento a qualidade das unidades públicas, mas, logo em seguida, diz que a oferta pública “está longe dos padrões de qualidade que hoje defendemos”;
    - A terceira resposta, foi a que mais me atordoou. Ela diz: “demandamos que a extinção do convênio esteja condicionada ao aumento de oferta pelo poder público”. O que ela critica são os convênios feitos? O tipo de convênio feito e a qualidade das instituições conveniadas? Diga-se de passagem, com transferência de recursos públicos. É isso? Mas, as públicas, segundo ela, também não têm qualidade;
    - Na penúltima resposta ela chega a defender as creches conveniadas ao afirma que “A criminalização da pobreza produz um olhar de “desconfiança” para as entidades conveniadas como se todas fossem, por princípio, usurpadoras do bem público”.

    Você consegue esclarecer esses pontos? Estou atordoado.

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  2. - Ela não se contradiz na entrevista, mas sua fala expressa a contradição do processo que se encontra em discussão. É uma fala ampla, que apresenta os dois aspectos. A sua defesa não é pelo conveniamento com creches privadas, contudo, falar da extinção dos conveniamento é também refletir o quanto isso afetará, em especial, os mais pobres, a classe trabalhadora nesse momento. O quanto afetará em relação à oferta, porque o poder público ainda não está preparado para assumir isso, para ampliar a oferta. É uma discussão importante porque se nesse momento o conveniamento continua, também é preciso pensar o que queremos para o futuro. E então, a defesa de grupos, movimentos, sindicatos etc. é que no futuro, a educação ofertada aconteça não através de repasses de verba pública para instituições privadas (as conveniadas), mas na direção da destinação de verbas públicas para a educação e oferta públicas.

    As respostas são dialéticas, não há como responder “absolutizando”, dando respostas maniqueístas. Deise expressa a realidade, o posicionamento e as contradições atuais, o que nem sempre é comum, porque o exercício da dialética é muito difícil.

    - quando diz “pode ser” ela expressa uma possibilidade, dado o contexto de debates desde a Conae, em 2010, em que os apontamentos e sugestões estavam relacionados à ampliação da oferta de vagas pelo poder público e não através de repasse público a creches privadas.

    - Isso, ela lamenta que as proposições de emendas relacionadas ao assunto, as quais foram enviadas ao relator, não entraram no parecer. O seu posicionamento (como professora ou membro do Fórum) se coloca como a defesa do fim dos convênios, contudo, faz uma avaliação de que isso deve acontecer ao mesmo tempo em que não se pode fechar os olhos para a forma como isso irá acontecer. A grande questão nas respostas, em momentos diferentes, é a maneira como as coisas estão sendo feitas e os limites do poder público.

    - Ela faz uma contextualização histórica, ao passo que não fecha os olhos para as condições precárias ofertadas através do poder público. A defesa da oferta pública, com repasses públicos etc. está relacionada com a defesa da qualidade. O que mais adiante ela traz em sua fala (em outra resposta), quanto ao perigo de “santificar” determinadas coisas ou “demonizar” outras.

    Além disso, há muitas instituições comunitárias que prestam um trabalho de qualidade melhor que o do poder público. Mas ao mesmo tempo é preciso um posicionamento político sobre qual modelo queremos; ter clareza em nossas mentes e ações, como um projeto popular de sociedade, como que modelo de educação, afinal, nos dá autonomia e soberania como país.

    Uma coisa é reconhecer os limites e os problemas na área da educação, outra questão é estabelecermos o modelo que desejamos, para onde serão destinadas as verbas públicas, quem fará a gestão da mesma (convênios?) e como faremos um controle social realmente adequado. O que parece mais coerente é que os movimentos sociais se posicionem numa luta (construída todos os dias) a favor da educação pública, com financiamento público.


    Deise é dialética. Reconhecer o fato histórico e a conjuntura atual é ser leal à realidade em que vivemos.

    - Ela critica os convênios, o tipo de convênio e a qualidade. Isso tudo! Ao mesmo tempo, critica os limites da oferta pública – ela é realista. Se não houver crítica, como melhorar isso quanto ao poder público?


    - É porque existem conveniadas que fazem um trabalho adequado, coerente, de aprofundamento e crítica. Da mesma forma, não podemos condenar todas as Ongs do Brasil, generalizando todas, colocando todo mundo no mesmo caldeirão... Como tem acontecido hoje com a criminalização das Ongs.

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  3. Ela apresenta a realidade, nem tudo que é conveniada é “inferno”, nem tudo que é público é “céu”. Precisamos ser coerentes com o que é a realidade, desde que não percamos o modelo que almejamos construir no futuro. Só se avançará rumo a outro modelo, se tivermos clareza dos princípios, valores etc. ao mesmo tempo em que soubermos lidar com aquilo que temos no presente. Reconhecer algo, não é necessariamente defender um modelo.

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  4. Se não há contradição, há falta de clareza. Pelo menos na parte que foi publicada.

    Sei que o movimento defende que as verbas públicas devem ser destinadas às instituições verdadeiramente públicas. Sei também que é preciso haver uma transição entre o modelo que vivemos hoje e o que é almejado, pois a estrutura pública existente não é suficiente para atender a demanda; muitas unidades públicas têm péssima qualidade; ... nada disso é novidade. O movimento debate e defende isso faz muito tempo.

    O problema e querer dar “respostas dialéticas” é não deixar claro aquilo se quer, aquilo que se defende. Não se trata de ser maniqueísta ou não. O que me deixa atordoado é a falta de clareza, de objetividade.

    Eu, por exemplo, defendo que a Educação e a Saúde deveriam ser unicamente pública. Em todo o país. Não deveria haver qualquer tipo de concessão. Somente assim aqueles que determinam a destinação de recursos para estas áreas olhariam com mais carinho para elas.

    Outra coisa que defendo é que as ONGs, como os nome diz, não poderiam receber qualquer tipo de recurso público. Para ser “NÃO” governamentais teriam que ser bancadas exclusivamente por recursos privados, não-públicos. E os recursos doados a esse tipo de instituição não poderiam ser descontados no IR. Caso contrário elas apenas substituem o governo, tomam lugar do governo, fazem aquilo que o governo teria que fazer, mas não faz. Se querem fazer, tudo bem, mas façam com verba exclusivamente privada.

    Na educação deve acontecer a mesma coisa. Instituições que queiram prestar o serviço de creche, que prestem, mas com dinheiro privado.

    É preciso haver um período de transição até que isso ocorra? Não resta dúvida!

    Ou seja, em nenhum segmento deve haver substituição do governo por instituições “não governamentais”, “não-públicas” (leia-se privadas).

    Se não aceitamos “conveniamentos” de creches, não temos que aceitar qualquer outro tipo de “desvio” de recursos públicos para instituições não-publicas. Isso é coerência. Sei que muita gente pode dizer que é extremismo. Mas, em minha opinião, esse é o modo de ver de quem quer puxar a sardinha para seu lado.

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